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Annie Lacroix-Riz
Realizada na noite de 29 para 30 de setembro de 1938 entre Hitler, ladeado por Mussolini, casamenteiro oficial, Chamberlain (Londres) e Daladier (Paris), a conferência foi o resultado do velho abandono francês da Checoslováquia e o momento-chave do «Apaziguamento» franco-inglês face ao imperialismo alemão abertamente belicoso.
«O Ocidente», recentemente rebatizado «comunidade internacional», trata como «muniquenses» todos os que criticaram a cruzada que Washington levou a cabo contra a URSS, acusada de «expansão mortífera», mal tinha secado a tinta dos compromissos forçados firmados com ela em Ialta e Potsdam, e a ininterrupta política da canhoneira, depois de 1950 (e da «guerra da Coreia»), intensificada depois dos anos de 1990.
O tema floriu em Paris contra «Nasser-Hitler» depois do anúncio pelo líder egípcio, em julho de 1956, da sua nacionalização do canal do Suez. Não conheceu tréguas depois da primeira guerra, com o Iraque, no Próximo Oriente, ou, na Europa, contra «Milosevic-Hitler» como diziam os cartazes colados nas paredes da União Europeia para denunciar a expansão da «Grande Sérvia» ou a sua «Operação Ferradura»[a] .
A verdadeira história da execução da Checoslováquia...
Os mesmos cruzados, porém, nunca explicam aos povos, assim dissuadidos de entrar em pactos com as forças dos novos Hitler que ameaçam «o Ocidente», o que foi a conferência de Munique. Realizada na noite de 29 para 30 de setembro de 1938 entre Hitler, ladeado por Mussolini, casamenteiro oficial, Chamberlain (Londres) e Daladier (Paris), a conferência foi o resultado do velho abandono francês da Checoslováquia e o momento-chave do «Apaziguamento» franco-inglês face ao imperialismo alemão abertamente belicoso.
A Checoslováquia tinha sido o símbolo por excelência da vitória do imperialismo francês sobre os impérios centrais, único «Estado sucessor», stricto sensu, do império austro-húngaro – os outros dois eram a Roménia e a Sérvia, que se tornou Jugoslávia (oficialmente «Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos» até 1929), não sendo mais do que acrescentos dos despojos dos austro-húngaros. As fronteiras deste Estado, criado pela França e que continuou fiel até à sua morte ao imperialismo francês, foram fixadas conforme os interesses metalúrgicos e mineiros do grupo Schneider du Creusot (Eugène Schneider em pessoa). Este tinha convencido o Quai d’Orsay[b] a integrar o território de Teschen, rico em carvão, neste Estado recém-nascido, em vez de o entregar à Polónia, porque os trabalhadores checos eram menos combativos que os mineiros polacos. Schneider recebeu também a propriedade ou, mais tarde, o controlo completo, à custa dos retoques cosméticos do capital, do fabricante de armamentos Skoda, equivalente austríaco da Krupp. A norma francesa de preservação do aliado principal tinha em grande medida motivado a proibição do Anschluss[c], de que o Reich foi devidamente notificado, quer pelo tratado de Versalhes, quer pelo de Saint Germain: os «meios bem informados» clamavam que, em 1918-1919, a anexação da Áustria arrastaria fatalmente, e a breve trecho, a da Checoslováquia.
Foi também Schneider que ditou a sua morte, num contexto que esclarecia bem as relações entre o imperialismo francês e os imperialismos dominantes. O «Diktat» de Versalhes não tinha sido respeitado desde logo em diversos domínios, dada a inclinação do capital financeiro francês para lidar com o seu homólogo alemão, parceiro essencial, no Sarre e em outras zonas, e protegido do grande aliado americano, credor imperioso. Desde os anos de 1920 da «reconciliação» franco-alemã oficial e, mais ainda, no decénio de 1930, que os cartéis metalúrgicos consagraram a superioridade esmagadora da indústria alemã, com o aval do grande capital francês, incluindo o feudo colonial do leste da Europa que lhe tinha proporcionado a vitória de 1918 («Estados sucessores» e a Polónia).
Daladier assina o acordo sob o olhar de Hitler
Durante a crise, que fez afundar as exportações, e quando «os mercadores de canhões» franceses se recusavam a rearmar a França contra o Reich, Schneider rejeitava a concorrência da Skoda. A casa mãe violou os acordos anteriores, designadamente sobre o monopólio «checoslovaco» sobre o mercado romeno, tão próspero, assim como sobre o mercado polaco, cujos Estados se armavam até aos dentes contra… a URSS; depois, considerou mais rentável vender a Skoda ao Reich que, ele sim, se rearmava e tinha necessidade do notável potencial militar-económico da Praga.
Paris nada tinha a recear do alto pessoal político da «democracia» checoslovaca, único apresentável dos Estados aliados antissoviéticos, estando a Roménia, a Jugoslávia e a Polónia nas mãos de ferozes ditaduras consolidadas pelas armas e pelos auxiliares franceses: cumulada de prebendas, entre as quais os lugares dos conselhos de administração na Skoda-Schneider e outros, a Checoslováquia vinha comer à mão dos seus benfeitores franceses.
Daladier numa viatura com Goering
Tão sensível às sirenes alemãs como o seu tutor francês, resignou-se, a partir de 1928 ao… Anschluss, Benès[d] e os seus incluídos. A segurança nacional do país dependia do domínio dos Sudetas montanhosos, pilar geográfico e económico da sua resistência militar, onde se concentrava o material Schneider, com uma réplica da linha Maginot[e] e da sua aliança «do avesso» antialemã.
A aliança militar defensiva Benès-Herriot de 1924-1925 não valia nada. Joseph Barthélémy, o impedido do Comité das Forjas[f], fascista eminente e futuro ministro da Justiça de Pétain, foi encarregado de comunicá-lo aos iminentes crucificados, em 11 de abril de 1938, num artigo retumbante do sobredito Comité, Le Temps [O Tempo], voz do Quai d’Orsay e predecessor do Monde [Mundo]. Esta aliança era tão oca que Paris quis suprimir o seu adido militar em Praga desde o fim dos anos 1920, depois renunciou a esta confissão prematura, deixando no seu posto até ao grito final o tchecófilo e impotente general Faucher, privado de «missão militar».
A única aliança que teria podido salvar Praga era com a URSS, assinada em 16 de maio de 1935 e ligada à aliança franco-soviética de 2 de maio. A outra estava neutralizada porque Laval, os seus sucessores, o secretário-geral do Quai d’Orsay, Alexis Léger (1933-maio de 1940)[1] e o ministério da Guerra, furioso contra os bárbaros do leste, se barricaram com eficácia, mesmo até ao início de agosto de 1939, contra a assinatura de acordos militares e aeronáuticos, os únicos que lhe podiam dar vida. Proibiram também aos seus fiéis, entre os quais Benès, de aplicar a aliança checo-soviética que Moscovo tinha proposto, em Praga, tornar-se bilateral, de 1936 até à capitulação checoslovaca perante o diktat franco-inglês.
Entre as benfeitorias que, em 1938, os Apaziguadores contavam proporcionar ao Reich, completamente incapaz de se lançar na guerra mas tão bom cliente, devedor compreensivo e tão resoluto a livrar dos Sovietes o mundo inteiro (mas também obcecado pela «Vingança» contra o ocidente), estava o Anschluss. Este aconteceu, tranquilamente, em março de 1938, como tinha sido previsto na reunião franco-inglesa realizada em Londres, a 29 de novembro de 1937, onde os radicais Chautemps, presidente do Conselho, e Yvon Delbos, Ministro dos Negócios Estrangeiros, fingiram ceder à “governação inglesa” – Chamberlain, Primeiro Ministro e Eden, secretário no Ministério dos Negócios Estrangeiros –, que os intimava a satisfazer também as «legítimas» reivindicações nacionais dos Sudetas emitidas pelo fantoche de Berlim, Henlein. Paris e Londres recolheram os aplausos calorosos de Washington, que então parecia indiferente à tutela alemã sobre a Europa, e do Vaticano, instrumento incondicional da expansão do Reich, desde que Bento XV se envolveu, no início de 1919, a ajudá-lo a conquistar o «Altreich»[g] (nas suas fronteiras de novembro de 1918) e a conquistar a totalidade do império austro-húngaro, cujos povos eram guiados pela Igreja romana desde o nascimento até à morte.
A esta penúltima etapa da invasão, levada a cabo em 1 de outubro de 1938, juntamente com a dos Sudetas, seguiu-se facilmente a última: o assalto alemão contra o coto checoslovaco, a 15 de março de 1939. Entretanto, em dezembro de 1938, Schneider, sob a máscara «checa», vendeu a Skoda ao conglomerado Dresdner Bank-Krupp, através do futuro primeiro-ministro das Finanças de De Gaulle, Aimé Lepercq, chefe da União Europeia Industrial e financeira (Schneider) e, durante a ocupação, «diretor responsável» do comité de organização das hulheiras (ditas «combustíveis fósseis»). O «Sedan diplomático»[2] [h], com o compromisso da invasão da França, tinha sido ratificado em 4 de outubro na Câmara de Deputados por 535 votos – da SFIO [Secção Francesa da Internacional Operária] a toda a direita reunida – contra 75: os 73 dos deputados comunistas, do direitista mas antinazi Henri de Kerillis e do deputado da SFIO Jean Bohey.
O «sobressalto» oficial dos «pacifistas», depois de 15 de março de 1939, puro engodo, não é defendido a não ser pelos historiadores indiferentes às fontes originais, e por todos os que, em 10 de julho de 1940, votaram os plenos poderes a Pétain, ratificaram Munique e concordaram com tudo o que se lhe seguiu.
A eterna defesa dos «Muniquenses»: o pacto germano-soviético
Como descrever publicamente o que foi «Munique», onde, intencionalmente, os Apaziguadores permitiram ao Reich, não apenas liquidar um aliado apresentado aos franceses durante tanto tempo como pivô da «aliança no reverso», mas também apagar a sua vitória de 1918?
01/10/1938 Assinados os acordos de Munique, as tropas
alemãs entram na região dos Sudetas (Checoslováquia)
Para quê falar daquilo que incomoda, agora que se pode continuar a atacar a «traição» dos Sovietes, o pacto de não-agressão germano-soviético e a esconder a dupla realidade para que os embaixadores e os adidos militares franceses e britânicos tinham alertado incansavelmente, no virar de 1932 (momento em que foi claramente compreendido, em Londres e Paris, a viragem antialemã da política externa soviética), até ao próprio dia da assinatura do pacto, em 23 de agosto de 1939: 1.º, perante o perigo militar alemão, «os Russos» queriam regressar à aliança tripartida de 1914; 2.º, se eles rejeitavam vivamente o veto de Paris e Londres deveriam negociar um compromisso provisório com Berlim.
O obstinado ódio antissoviético realizou todas as previsões de setembro de 1938, e não apenas as dos comunistas, sobre as funestas consequências do «Sedan diplomático»[h] assinado em Munique: a invasão iminente, que a aliança e as divisões russas (não «os taxis de la Marne»)[i] tinham evitado à França em 1914-1915. É o assassinato franco-inglês da Checoslováquia, seguido pela rejeição das ofertas de alianças soviéticas, formais e renovadas, o que define os «Muniquenses». Aqueles cujos herdeiros contemporâneos se deixam espezinhar, tão alegremente como outrora, pelos seus poderosos «aliados» ou tutores, espadeirando contra os «Muniquenses» imaginários.
Notas
. da Autora
[1] NDLR Marie-René Auguste Alexis Leger, dito Saint-John Perse, foi também poeta, escritor e laureado com o prémio Nobel de literatura em 1960.
[2] Gabriel Péri, L’Humanité, 01/10/1938.
. do Editor
[a] No decurso do processo da intervenção da NATO na Jugoslávia, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha anunciou a descoberta de um alegado plano expansionista sérvio visando esvaziar o Kosovo da sua população albanesa, a que atribuíram o nome de «Operação Ferradura», em alusão ao formato geográfico do território croata. Era necessário demonstrar que a Sérvia tinha cometido atrocidades para justificar as operações militares imperialistas. Essa afirmação era completamente falsa, pois os alegados mapas, encontrados como prova, provinham dos serviços alemães. https://resistir.info/europa/cruzada_de_cegos_5.html. – NE
[b] Ministério dos Negócios Estrangeiros de França. – NE
[c] Anexação da Áustria pela Alemanha nazi, em 1938. – NE
[d] 2º Presidente da Checoslováquia, a partir de 1935. Após a anexação da Região dos Sudetas pelos nazistas, Benès renunciou, partindo para o exílio em Londres. – NE
[e] A Linha Maginot foi uma linha de fortificações e de defesa construída pela França ao longo de suas fronteiras com a Alemanha e a Itália, após a Primeira Guerra Mundial, entre 1930 e 1936. O complexo de defesa possuía várias vias subterrâneas, obstáculos, baterias blindadas escalonadas em profundidade, postos de observação com abóbadas blindadas e paióis de munições a grande profundidade. https://pt.wikipedia.org/wiki/Linha_Maginot. – NE
[f] Organização patronal francesa da siderurgia. – NE
[g] «Velho Império». Termo utilizado depois da anexação da Áustria pela Alemanha para designar as fronteiras da Alemanha antes desta anexação. – NE
[h] Referência à batalha de Sedan, em 1 de setembro de 1870, da guerra franco-prussiana, que terminou com uma vitória decisiva das forças da Prússia. – NE
[i] Os «taxis de la Marne» são os táxis parisienses requisitados pelo exército francês durante a primeira batalha do Marne, em 6 e 7 de setembro de 1914, para transportar os homens de uma brigada de infantaria enviados como reforço de Paris para o campo de batalha. – NE
Referências
Fonte: Publicado em “La Presse Nouvelle Magazine” n° 358, setembro de 2018, pp. 1 e 6-7.
Tradução do francês de TAM
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