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Adrian Pourageaud

Então, porquê nomear uma ministra altamente impopular, envolta em numerosos escândalos, para chefiar a Comissão Europeia? Foi nada mais nada menos Emmanuel Macron, que propôs o seu nome à então chanceler Angela Merkel em julho de 2019, descrevendo-a como “o avião de combate do futuro” e saudando “a sua eficiência, a sua capacidade de fazer coisas”.

 

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Ela foi descrita pela revista Forbes como a “mulher mais poderosa do mundo” durante dois anos. Ela ocupa o primeiro lugar na categoria  Dreamers do blog Politico. Ela beneficia de todos  os retratos uns mais hagiográficos do que os outros na grande imprensa. No entanto, a carreira da Presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, está manchada por muitos escândalos. Empossada pelos conservadores para liderar um segundo mandato, ela, por si só, concentra as razões da rejeição popular das instituições europeias.

REPRODUÇÃO SOCIAL E ESCÂNDALOS POLÍTICOS

Nascida numa grande família aristocrática, filha do antigo funcionário público europeu e presidente do Conselho Federal alemão Ernst Albrecht, Ursula Von der Leyen frequenta a Escola Europeia desde os seis anos de idade. Esta instituição (são catorze no continente europeu) é reservada aos filhos de funcionários europeus, instituições intergovernamentais (incluindo a NATO) ou certas empresas privadas. Este privilégio permite-lhe tornar-se trilingue (Alemão-Francês-Inglês). Em seguida, estudou matemática, depois economia, antes de se redirecionar para os estudos médicos, para ser aprovada na sua tese – na qual nada menos que um plágio é anotado a cada duas páginas – em 1991.

Ursula Von der Leyen é, desde 1990, membro da União Democrata-Cristã da Alemanha, o partido liberal-conservador de que era também originário o seu pai (como Vice-Presidente Federal) e a então ex-Chanceler Angela Merkel. Entrou oficialmente na política em 2001, quando ganhou um mandato como eleita local na região de Hanover. Em 2003, foi eleita deputada ao Parlamento da Baixa Saxónia. Seguiram-se várias passagens por ministérios federais: em 2005, Ursula Von der Leyen foi nomeada por Angela Merkel Ministra Federal da Família, Terceira Idade, Mulheres e Juventude; em 2009, Ministra Federal do Trabalho; e em 2013, Ministra Federal da Defesa, a primeira mulher a ocupar o cargo.

A sua passagem pelo Ministério da Defesa foi marcada por vários escândalos: entre uma acumulação de más decisões de gestão, procedimentos contratuais que não foram respeitados e desperdício de dinheiros públicos (várias dezenas de milhões de euros foram esbanjados sem qualquer controlo para pagar a consultores, conselheiros e outros subcontratantes privados), a imagem de Ursula Von der Leyen sofreu com o exercício do seu mandato.

Quando deixou o ministério, a sua popularidade era estimada em menos de 30% (era considerada a 2ª pessoa menos competente do governo), e a sua competência para liderar a Comissão Europeia era apoiada por um terço da população. Isso poucoimporta, o inquérito parlamentar instaurado pela oposição foi inviabilizado; os vestígios foram todos rigorosamente apagados dos dois telefones profissionais da antiga ministra da Defesa.

Então, porquê nomear uma ministra altamente impopular, envolta em numerosos escândalos, para chefiar a Comissão Europeia? Foi nada mais nada menos Emmanuel Macron, que propôs o seu nome à então chanceler Angela Merkel em julho de 2019, descrevendo-a como “o avião de combate do futuro” e saudando “a sua eficiência, a sua capacidade de fazer coisas”.  Tomêmo-lo como dito.

 ESCÂNDALO PFIZER E REVIRAVOLTAS EM CADEIA

Eleita em 2019 por uma estreita maioria (51,7% dos votos), Ursula Von der Leyen rapidamente frustrou as esperanças do centro-esquerda reformista, aplicando quase de imediato uma política alinhada com a de Jean-Claude Juncker. Até aqui, nada de espantar. Mas não tardou a surgir um caso. Em abril de 2021, no auge da crise sanitária, um artigo do New York Times revelou mensagens de texto trocadas entre a presidente da Comissão Europeia e Albert Bourla, diretor executivo da empresa farmacêutica Pfizer.

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As mensagens, trocadas ao longo de mais de um mês, diziam respeito às negociações de um contrato de compra de 1,8 mil milhões de doses da vacina Pfizer/BioNTech contra a COVID-19. Estas doses acabaram por ser mais caras do que o previsto: 19,50 euros por vacina em vez dos 15,50 euros previstos. Três anos depois, a situação continua num impasse; Ursula Von der Leyen recusa-se a revelar os emails, apesar dos repetidos pedidos da Provedora de Justiça Europeia, Emilie O’Reilly. Apesar de um custo adicional de nada menos que 7,2 mil milhões de euros de dinheiros públicos…

Ursula Von der Leyen também tem uma ideia particular do cumprimento de promessas. Recentemente, ficámos a saber que começava a recuar em relação a certas medidas que queria pôr em prática: o Pacto Verde para a Europa, que visa tornar a Europa neutra em termos de clima até 2050. O mesmo se aplica ao alargamento da União Europeia à Ucrânia, que ela defendeu ardentemente desde que a Rússia invadiu o país. Com a perspetiva de uma reeleição (ou de uma expulsão) a poucos meses de distância, governa de acordo com as diferentes sondagens de opinião nas datas das eleições. E é pena que toda a Europa sofra com isso.

A mulher que queria fazer da Europa “o primeiro continente com impacto neutro no clima” está a começar a desfazer, lenta e meticulosamente, o Pacto Verde para a Europa, que considerou uma prioridade durante o seu primeiro mandato. Tal como Emmanuel Macron, que apela agora a uma “pausa” nas políticas climáticas (já começaram?), ou o Partido Popular Europeu (que inclui a CDU, os Republicanos e a Forza Italia), que a fustiga, a presidente da Comissão Europeia não tem dificuldade em suportar as lamúrias dos seus colegas liberais-conservadores.

 

RAINHA DO DUMPING SOCIAL E DA CONCORRÊNCIA DESENFREADA

Como já analisámos aqui, o alargamento da UE à Ucrânia e a outros países da Europa de Leste coloca grandes problemas. Para além do apoio legítimo ao país agredido*, a sua integração na UE teria graves consequências económicas e geopolíticas. O desmantelamento progressivo dos diversos Estado-Providência europeus, bem como do direito do trabalho e das conquistas sociais, corre o risco de ser brutalmente acelerado, como demonstraram os alargamentos de 2004 (entrada de dez países da Europa Central) e de 2007 (entrada da Bulgária e da Roménia).

Na sequência das “quatro liberdades” do mercado único europeu – livre circulação de mercadorias, capitais, serviços e pessoas – as grandes empresas puderam deslocalizar em massa a sua produção para a Europa de Leste, a fim de beneficiarem de custos de mão-de-obra muito mais baixos. Na Ucrânia, o salário mínimo está fixado em 168 euros por mês, muito abaixo dos 400 euros pagos aos trabalhadores búlgaros, que são atualmente os mais desfavorecidos do continente. E, num contexto em que as regressões sociais (incluindo a suspensão em massa do direito à greve) e os ataques aos sindicatos são numerosos, e em que o Presidente Zelensky continua a praticar uma política de sedução dos investidores ocidentais, é de esperar uma nova descida do “custo do trabalho” ucraniano.

A entrada da Ucrânia na UE poderá também ter efeitos nefastos para a agricultura. Com a sua vasta produção de cereais, a Ucrânia pode ser o testemunho privilegiado do cenário (e às suas consequências) da adesão do país à UE. Alguns meses após a introdução deste sistema de vendas, o preço do trigo na Hungria baixou 31% e o do milho 28%. Os beneficiários de uma tal eventualidade são bem conhecidos. Aproveitando a possibilidade de utilizar trabalhadores deslocados (ou seja, mão de obra mais barata), as grandes multinacionais já estão a salivar com a ideia de deslocalizar as suas fábricas ainda mais para leste.

 UMA FUGA EM FRENTE MILITARISTA

O alargamento da UE aos Estados Bálticos e à Europa de Leste revela também o alinhamento da Europa com as posições americanas. Pascal Boniface, diretor do Institut de relations internationales et stratégiques (IRIS), salienta que, se a Ucrânia aderir à UE, o país tornar-se-á “uma correia de transmissão das posições dos Estados Unidos”, “acreditando que deve tudo aos Estados Unidos e não à Europa”. De facto, não é difícil perceber que as anteriores extensões da União Europeia a Leste aumentaram o seu alinhamento com as posições dos EUA…

Outro assunto sobre o qual Ursula Von der Leyen tem sido muito criticada é a questão palestiniana. Quando se deslocou a Telavive, em outubro passado, sem informar o Conselho Europeu (com o qual mantém más relações) e sem ter competências em matéria de política externa, manifestou o seu apoio ao “direito de Israel a defender-se”. Nenhuma declaração de que o direito internacional deve ser respeitado; pior, nenhuma palavra de compaixão ou de apoio à população de Gaza, que está a ser bombardeada há quase cinco meses. Esta posição, no mínimo unilateral, foi criticada por muitos países europeus (Portugal, Espanha, Luxemburgo, Irlanda, Bélgica, etc.), cujos ministros dos Negócios Estrangeiros tinham adotado posições muito mais equilibradas.

Menos comentadas,  as suas boas relações com o regime azeri de Ilham Aliev, também levantam muitas questões. Em julho de 2022, encontrou-se com o chefe de Estado do Azerbaijão em Baku e assinou um acordo de gás destinado a aliviar a escassez de energia da União Europeia. Resultado: um consequente enfraquecimento da União Europeia, colocada de facto numa posição de dependência em relação a um governo com aspirações belicosas. A Presidente da Comissão Europeia não ignorava, certamente, que Ilham Aliev não hesitou, durante a guerra de quarenta e quatro dias contra a Arménia, no outono de 2020, em contornar as convenções internacionais, utilizando bombas de fósforo, torturando prisioneiros de guerra e recorrendo a mercenários sírios recrutados nos movimentos jihadistas. Depois, em setembro de 2023, voltou a fazê-lo, lançando simplesmente uma guerra contra a autoproclamada república do Nagorno-Karabakh.

Ursula Von der Leyen tem finalmente outra ideia de diplomacia. Depois de ter rejeitado completamente qualquer ideia de cessar-fogo, ela agora considera uma guerra à escala europeia “não impossível” e afirma que “devemos [estar] preparados para isso“. Thierry Breton, Comissário responsável pelo mercado interno, concorda Thierry Breton, Comissário responsável pelo Mercado Interno, concorda com esta afirmação e tenciona "avançar para uma economia de guerra”. Já em 2014, quando era ministra da Defesa, Ursula Von der Leyen defendeu uma política externa muito firme, enviando armas e equipamento militar às Forças Armadas curdas e iraquianas, rompendo assim com a tradição alemã de não exportar equipamento militar para uma zona de conflito. E tanto pior para os milhões de euros desperdiçados em aviões de combate e de transporte militar que permaneceram no solo, bem como helicópteros que nunca foram readaptados às condições de voo. Uma fuga para a frente militarista que estranhamente ressoa com as notícias francesas da atualidade …

Fonte: Qui est réellement Ursula von der Leyen ? (lvsl.fr) publicado em 16.03.2024, acedido em 24.06.2024

Tradução de TAM

 

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